"Uma vida bem vivida." - não será isto que todos quereremos dizer no final? Não será esta a direção, a métrica, o mapa que nos orienta aos comandos? Para uns de forma mais subtil, quase inconsciente. Para outros vertida em meticulosos planos-mestre, explanados em folhas de excel, em impressões A4 coladas a fita-cola num jogo infantil de cola e cose, uma pequena tapeçaria da vida...
Mas que fazer quanto à incerteza do seu tamanho? Oh, pergunta das perguntas, crucial para o plano: viverei até aos 80, e como tal não me devia preocupar mais com a poupança reforma? Morrerei com um cancro fulminante que ainda não descobri e terei de inverter totalmente a estratégia? Virá um improvável acidente numa passadeira, ou um igualmente improvável aniversário de 100 anos? Um século, uau! Quem diria que ia viver tanto tempo, todos esses anos a preocupar-me quantos seriam!...
Enfim, é como quem tem que decidir mudar ou não os pneus do seu fórmula 1, não sabendo se a corrida vai acabar na próxima volta ou daqui a duzentas...
No pano de fundo, a relação com a incerteza. Este não saber, este ter que ter algumas métricas, vai o jogo já a meio, e controlar apenas o centro do tabuleiro já não diz muito... planeamos a troca de peões? Tantos jogos acabam dependentes de uma mera casa para a frente e para trás. Se o peão estivesse na seguinte, era vitória certa, porque não pensaste nisto mais cedo?... e quanta paz não se consome nos planos? ou, melhor, na monitorização deles, na eventual condenação de não termos a disciplina de os cumprir, de os rever, de os fazer...
Quanto da felicidade não estará mesmo em saber largar o volante? Numa medida de equilíbrio natural, de modo a que nem essa medida de equilíbrio tenhamos que controlar... um "don't be the pilot, be the plane" remoendo por trás, serei capaz? Haverá mesmo esse giroscópio a garantir a estabilidade se largar os comandos que julgo ter, mas talvez nem tenha? Quando reparamos no tanto que já somos capazes de voar... e no tanto que acontece automático, o planeta sempre a girar sem que ninguém o empurre e aquela borboleta ali no jardim, pousando sozinha, aparecendo sozinha, não prevista, não decidida, não encomendada, nem calendarizada...
É cada vez mais evidente. O projeto de uma suposta "vida bem vivida" não me cabe. Parece requerer espalmar, quadricular, achatar este céu de um azul bem tridimensional, que de tão intenso parece sólido, como diria Krishnamurti: quase lhe poderíamos cortar uma fatia e colocar no bolso... volumoso, intensamente denso, profundamente infinito. Enfim, um azul nada otimizável, nada planeável, vivendo num plano próprio de amplitude de experiência...
A incerteza não é o nosso inimigo. É a promessa, é o mergulho em libertação, é a mera observação, não direcionada, mera consequência da ausência de controlo, é um livro empolgante do qual não sabemos o fim, é um delicioso futuro filme-favorito no momento em que o estamos a saborear pela primeira vez, imprevisível, irrepetível, absorvente na sua condição de incerto. Este incerto não é um alvo a abater, é o sítio de paz onde habita a imensa fonte de toda a experiência...
Gonçalo Gil Mata
(Foto: Mostar, BOSNIA-HERZEGOVINA)