ASSIM NÃO BRINCO
04-11-2016
ASSIM NÃO BRINCO

Florença, ITÁLIA


 

Era uma frase habitual em criança: "assim não brinco".
 
Dizia-se quando as condições do jogo não pareciam justas.
 
 
"Assim não brinco" vinha com um preço simples: não brincar. Partíamos para outra e ficava saldada a situação.
 
 
Mas "assim não brinco" não nos serve, a nós adultos. Neste mundo de graúdos empurram-nos a jogo. Temos que alinhar. Mesmo que em passos cambaleantes, desistentes ou indignados, não nos deixam abandonar a caminhada. Mesmo perante tamanha injustiça lá no emprego, daquelas que doem nas vísceras. Mesmo se uma doença tirana vinda do nada quer levar um dos nossos cedo de demais, e nós que não pode ser, mas é mesmo. Mesmo se por culpa alheia se nos desmorona o castelo, na frustração de um negócio injustamente arruinado. Ou num amor traído, o amargo na boca à procura de andar à força para trás no tempo, a tentar salvar o que sabemos nunca mais voltar.
 
 
Enfim, não há injustiça ou tristeza, fúria ou indignação que nos confira essa carta de trunfo "assim não brinco". Muitas vezes nem um simples "pessangas" nos é permitido. Não há como desistir. Adormecemos para acordar no mesmo. Indelével. Aparentemente perpétuo. 
 
 
 
Felizmente que, uma vez após outra, numa fiabilidade religiosa, perfeita, sem falhas, dá o mundo as voltas que precisa de dar para nos devolver à brincadeira. Mostrando que não há catástrofe que não se dilua nos ponteiros das horas. Que não há fome que não dê em fartura. Que podemos, uma e outra vez, devolver-nos à magia de estarmos cá, sobrevividos a mais uma intempérie. Abalados, abananados, torcidos, dilacerados, amachucados, cambalhotados, espremidos, sufocados, mas de volta. Uma e outra vez, sempre de volta, à força bruta da natureza de existir...
 
 
Então um dia respiramos. Enchemos de ar os pulmões e suspiramos de vez as perdas que arrastávamos. Fica o grilhão para trás. Vêm certamente connosco algumas lágrimas eternas para nos aconchegarem nas alturas certas. Mas, no fundo, já está. Já passou. Voltamos. À vida. À brincadeira.
 
 
Quando a quantidade certa de água tiver passado debaixo da ponte, sempre voltamos, se nos permitimos ser humanos...
 
 
 
 
 
 
Gonçalo Gil Mata
 

 

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