Jaipur, INDIA
Era uma vez um par de monges tibetanos - um mestre e o seu jovem discípulo - que caminhavam numa enorme viagem de auto-conhecimento. A certa altura depararam-se com um rio baixo, mas muito agitado, onde estava uma mulher em apuros, enfrentando a forte corrente e pedindo ajuda.
Os monges, muito atrapalhados, conscientes da proibição em absoluto de tocar em mulheres, olharam à volta, procurando em vão quem a pudesse ajudar. Depois de muita hesitação, o mestre entrou na água, carregou a mulher sobre os ombros e pousou-a do outro lado.
Os dois monges prosseguiram a caminhada, num silêncio perturbado, o mais novo resistindo a comentar o escândalo, até que, um bom tempo depois, não se conteve mais e disse:
- Mestre, não compreendo. Fizemos um voto sagrado! Anos e anos de cumprimento fiel! Como foi capaz de carregar a mulher?
- Meu jovem, a decisão foi tomada. O que está feito, feito está. Eu pousei a mulher assim que cheguei à outra margem. Tu continuas a carregá-la na tua mente há horas!
(fábula popular tibetana)
Este fenómeno de "digestão mental" de eventos e decisões, foi batizado pelos académicos de "ruminação mental". O que, parece-me, faz todo o sentido. Escolhemos uma opção, e mais tarde vomitamo-la, para voltar a engolir, digerir mais um pouco, volta a regurgitar, mastiga um pouco mais, enfim, o ciclo tradicional do arrependimento. Arrepender tem a intenção de fazer aprender. Uma emulação propositada de um estado emocional negativo, chibata em riste numa auto-fustigação implacável, a ver se aprendes, para a próxima fazermos melhor.
Isto teria tudo muito sentido, não fosse este processo de penitência encravar de vez em quando e cair num loop infinito, numa encarnação do imperdoável, do indesculpável. No fundo, uma auto-martirização de quem não aceita o seu erro, e as suas consequências. Um acidente terrível a uma criança, uma dívida séria a obrigar a vender a casa, uma imprudência contratual a abrir uma fragilidade extrema, uma falência que talvez pudesse ter sido evitada, um "sim" ou um "não" irreversíveis, numa encruzilhada desleal que nos apanhou incautos, crentes, displicentes, distraídos ou apenas patetas.
A eterna ruminação que se segue, consiste numa inocente tentativa de programar um "nunca mais caio nesta". E uma parte de nós passa a polícia. Mais precisamente, a polícia do merecimento. Tamanha asneira, tamanho castigo. E, puxa daqui, puxa dali, os ministros cá dentro podem bem decidir que esse fardo será carregado para o resto da vida. Proibindo para sempre a leveza de existir.
Peso pesado é então colocado nos ombros, lembrete indelével do disparate. E relembrado, revitalizado, reinventado com assiduidade num impecável zelo militar.
É, de facto, o processo faz sentido, tem uma funcionalidade lógica por trás. E, ao mesmo, tempo, é uma tolice. Não podemos aprender mais do que um certo aprender. Um auto-estalo não tem que se tornar numa auto-tareia eterna. O fardo do passado pode ir sendo pousado no caminho, assim que estiver compreendido. E por "compreendido" quero dizer compreendida a humanidade falível do processo de decidir.
Porque, se pensarmos nisso, todo o bem que poderíamos adicionar ao mundo, e que nos leva a pesar esse fardo, ao termos produzido mal, nunca poderá ser sanado se nos subtrairmos à responsabilidade de seguir o caminho. Há muito bem a fazer ainda, mas que não pode ser feito num estado de imobilização voluntária. Não podemos deixar que o medo de fazer nova asneira nos tire a possibilidade livre de tentarmos outra vez saldar as contas. Não podemos deixar que essa armadilha nos tire a vontade de renascer, completos, novamente merecedores de toda a felicidade que houver para ter, sob pena de desbaratarmos o privilégio inigualável de estarmos vivos.
Há que acordar! O que está feito, feito está. Há que ter coragem de pousar o fardo e continuar a caminhada...
Mais sábios, certamente, mas leves. Porque dessa leveza de alma nascerá a liberdade de darmos muito mais contributo a esse mundo credor. Tenhamos a coragem de saldar as contas!
Gonçalo Gil Mata
Lição de vida