DESPEDIDAS MERECIDAS
ARTICLES • 22-11-2016
DESPEDIDAS MERECIDAS

Khemisset, MARROCOS


 

A minha avózinha fazia anos a 1 de Maio, dia do Trabalhador. Ora, sendo feriado, e sendo ela mãe de 6, avó de 21 (e bisavó de alguns mais), anualmente em sua casa era uma romaria digna de se ver. Lembro-me como se fosse hoje de uma vez, numa dessas festanças, era eu ainda rapazito, a ver de olhos marejados deixando escapar umas lágrimas à porta do jardim, enquanto contemplava a prole na algazarra do costume. 
 
Perguntei-lhe: "Porque choras, vovó? Não estás contente?".
 
E ela, sem se justificar, mais para me explicar coisas da vida: "Sabes, às vezes também se chora de alegria...".
 
Por coincidência, depois desse ano, não se voltou a repetir a festa. A idade tem destas coisas, certo dia bate-nos à porta com os seus dizeres e há que obedecer, que remédio. Pensei, estaria também a chorar a adivinhada despedida?
 
 
Recordo-me deste episódio de cada vez que regresso de uma viagem. Esta semana foi o caso. Já no taxi para o aeroporto, uma última filmagem nas ruas movimentadas, tão típicas, os phones a embalarem o espírito numa banda sonora nostálgica, deixo-me emocionar pela magia de viver. "Às vezes também se chora de alegria", relembro. Mas a verdade é que, para mim, a despedida de qualquer viagem sabe sempre a uma despedida da vida. Misturam-se, penso, duas águas do que foi feito: o bom que foi fazê-lo com a tristeza de ter que o deixar para trás. Para não mais voltar. Sim, porque nada na vida volta. Tudo muda, tudo evolui. É sempre no mesmo sentido o caminho, e quem já muito andou menos tem para andar. Regras simples da vida. Leis que não se aprovam.
 
Choro a despedida do que nunca mais volta, banhado na alegria, na admiração e na plenitude de por lá ter passado. Choro o privilégio de o ter vivido, sendo tanto o que já vivi! Boa sorte me saiu na rifa, verdade seja dita. Grato pela viagem, sempre. E ainda assim, choro cada despedida.
 
 
Intensas são as marés da alma. Onda vai, onda vem, não há razão que as segure. E no entanto, entendo-as bem melhor quando sei que não tenho de as domar. Um mero aconchego. Um pano de fundo. Um embalo de berço, mimalho, na segurança de que qualquer coisa de sólido e imutável haverá em tudo isto que se esfumaça diariamente à minha frente. Riscado o belo traço, logo a tinta se esvai na esteira da pena... passeando-se depois na memória, mas já do outro lado do papel, mais fosco, mais ténue. À mão de semear se nos lembrarmos, mas não igual. Porque o agora é a mais vibrante das cores. De irrepetíveis pinceladas se desenha o quadro da vida.
 
Por isso merece que se chore a despedida. Por isso merece que se chore mais este adeus a esta viagem, a estes cheiros, a este burburinho deste mercado que grita de energia, intensa experiência a de cá estar. A de lá estar, melhor dito, porque... já se foi! Bateu-se mais uma passada do ponteiro do relógio. Lá se escapou mais outra, e outra, na ilusão do tempo... que rápido passa!
 
 
Por tudo isto merece ser chorada a vida... um choro de alegria e de celebração, como de despedida e de gratidão.
 
 
 
 
 
Gonçalo Gil Mata
 

 

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