Mais uma morte na família.

 

 

Imagino que seja natural, a certa altura, ver partir a fileira da frente. Mas, à medida que os da frente se vão, é quase inevitável pensarmos que, não tarda, somos os próximos candidatos.

 

 

Faz-me lembrar um desenho animado do antigamente, em que se via uma enorme fileira de personagens todas iguais, encostadas lado a lado até à ponta final, onde havia um precipício. O ciclo começava na outra ponta, cada personagem cotovelando o vizinho em sequência, até chegar ao último, que sendo cutucado caía, desaparecendo no abismo num grito desmaiado. Então, todos davam de forma sincronizada um bom passo ao lado, cada um ocupando o antigo lugar do vizinho, no sentido do desfiladeiro. A cena tinha um certo suspense associado: quem ocupava o lugar mais próximo da queda, tremia em pânico, aguardando com ansiedade a propagação do toque, um a um, desde a ponta inicial da fila. O penúltimo da fila, tremia apenas um pouquinho. Antes destes dois, no entanto, ninguém mais na fila demonstrava o mínimo receio, impávidos no processo, à espera da cotovelada seguinte, à espera do próximo passo sincronizado.

 

 

Hoje, em mais um momento de despedida, sinto uma transição. Um passar de impávido para tremer apenas um pouquinho. O abismo ainda vem longe, mas é também verdade que está um pedaço mais perto...

 

 

Enfim, a vida é uma eterna despedida. Despedimo-nos assiduamente de quem parte, despedimo-nos do passado que um dia vivemos, e até nos despedimos um pouco do futuro - daquele futuro que não estaremos cá para ver. Mas há uma possível armadilha nesse pensamento: podemos ficar a pensar que, quando chegar a nossa vez, será muito difícil ir embora. E se calhar não é verdade. Se calhar não vai ser nada difícil. Se calhar, nessa altura, e pensando que, para a maior parte de nós, será numa idade muito avançada, já teremos outro juízo. Outra espécie de juízo. Outra maneira mais sábia, ou mais tola, tanto faz, de compreender o ciclo da vida. Talvez até, quem sabe, um outro entendimento do sentido que tudo isto possa ter, de modo a nada temer, de modo a não tremer...

 

 

Se assim for, se pacífico for esse momento, esses últimos dias ou anos, imaginem o desperdício que não seria estarmos sempre preocupados a garantir que, um dia lá chegando, tudo termos feito para aproveitar ao máximo. Sabendo, como já aqui disse, que correr de olhos postos no depois, pode bem reduzir-nos a disponibilidade de viver cada dia.

 

 

Se antes de nascer me perguntassem se gostaria de por aqui passar, mesmo sabendo que um dia teria que ir embora, diria sem dúvida que sim. Sem castigo de Sísifo, fazer parte deste grande mistério da existência, desta viagem aventureira que ninguém sabe bem significar, é por si só uma ideia estupenda! Tendo oportunidade, não a perderia por nada deste mundo. E se o preço é sentir de quando em vez uma certa nostalgia por não poder ficar para sempre, pois bem, parece um preço bem pequeno por tão incrível experiência! Tão cheia de magia, de grandiosidade, de beleza, de emoção, de momentos divinos.

 

 

Cresce-me então a alma para aproveitar o privilégio. E vem um sentido de eternidade a cada sorriso de um filho; talvez mais ainda virá com o de um neto... E vem um sentido de humildade quando vejo partir mais alguém, tão próximo este. Contente porém por saber que, em particular, foi daqueles que tranquilamente aproveitou a longa jornada. Despeço-me: até já, sabendo que perdura a memória, sempre audível, da sua presença.

 

 

E aos que por aqui ficam mais um pouco: notem bem à vossa volta, nos mais pequenos detalhes, mas sem pequenez no olhar - tudo isto é incrível, não é?... um Universo inteiro de experiências possíveis!!! Valeu bem a pena termos vindo! Enjoy the ride...

 

 

 

Gonçalo Gil Mata

 

 

 

P.S: se alguém souber de que "desenho animado" falo - passava às vezes quando era preciso fazer horas antes do telejornal - e o encontrar algures, agradeço o link, adorava rever.