San Miguel de Tucuman, ARGENTINA
Dá-me a ideia que, ao ver alguém bem sucedido, uma pessoa importante, ou que de algum modo admiro, tinha antigamente a impressão de o seu percurso ser um plano notavelmente engrenado, premeditado, intencionalmente arquitetado. Porém, como o desenho inspirado de qualquer artista, surgem-me agora estas vidas com o mérito mais partilhado do que alguma vez pensei. Isto é, a obra, nascida do artista, certamente, parece-me agora, mais do que nunca, da responsabilidade da musa, da sorte, do acaso, do simples improviso.
Porque vemos, então, acontecer tendencialmente mais a uns que outros? Não, não é mero fado. A diferença, parece-me, esconde-se numa característica única: um bom artista sai da sua própria frente quando se põe ao caminho. Não tropeça em si mesmo quando quer dar cada passo, mesmo quando ainda não sabe bem onde vai dar o troço.
Quando pensamos nisso, já caminhamos há muito tempo... tantos tantos passos já dados, a construir vida, qualquer que ela seja. E sendo todas válidas, naturalmente, de facto umas parecem mais inspiradas que outras. Na minha opinião, quem sabe temporária, isso acontece mais a quem faz a sua parte na caminhada sugerida: caminhar! Travar também dá vida. Também é opção. Como pousar o pincel é opção. Apenas não vem daí a mesma ligação à sabedoria do mundo e das coisas. Não vem daí o mesmo acesso à magia da criação. E a obra que nasce não é certamente igual.
Como este texto, que quase se escreve sozinho quando não penso demasiado e mergulho num certo gozo fluído de ouvir o teclado a bater, ou no instante seguinte já o exercício se torna lento e penoso se começo a duvidar se está a ir bem ou não. Classificando cedo demais, vetando possibilidades que logo a seguir na curva seriam boas explorações. Quase como se o polícia ou juiz cá dentro se pusesse a deliberar cedo demais, indo ainda a procissão no adro...
Há que deixar correr. Há que seguir passos simples, sugeridos à nossa frente, empurrando-nos por dentro e permitirmo-nos a liberdade de os tomar. Enfim, ver passo a passo o caminho fazer-se. E desse tão limitado mérito de pôr um pé a seguir ao outro, de acordo com instruções celestiais - evidentes a quem está disponível para as escutar - surgem expressões, no mundo da forma, de algo que não tem bem contornos, e que é antes mero potencial.
Todos, sem exceção, sabemos reconhecer esta fonte de que falo e, querendo, a ela temos acesso. Simplesmente algures no tempo a vida foi-nos amestrando. Treinando aceitá-la numas coisas e não noutras, vá-se lá saber com que ideia. Mas é interessante como fazemos tantas coisas incrivelmente inspiradas, cada um à sua moda. Seja num legado digno de estátua de jardim público, seja nos mais recatados detalhes de genialidade doméstica, de consequências menos arriscadas! Sim, que o sucesso mete medo...
Admiráveis, que somos, quando nos assiste a liberdade de nos ligarmos à inspiração latente, para pintar um quadro ou para montar um negócio que está mesmo a pedir para ser montado. Mas, para surgir obra, não esquecer que o pincel tem que mexer, e os papéis têm que ser entregues na câmara, telefonemas têm que ser feitos, e as letras, uma por uma, batidas no teclado. Esses pequenos passos, que são meros tijolos, insignificantes por si, vão criando a catedral, quase que sem mais trabalho que empilhar cada um em cima do anterior, onde pareça fazer mais sentido.
Restam-me poucas dúvidas que "sucesso" não passa de um caminho caminhado, entre mil possíveis, quando alguém se predispõe a aceitar, um após outro, cada convite para o passo seguinte, mais uma pincelada esgrimida na tela, mais uma palavra despejada no texto, mais um número de telefone marcado nas teclas do telemóvel. Não tanto um ato de coragem, cada um deles, mais um ato de liberdade de seguir alma. Passadas soltas, livres, quase autónomas, uma, e outra, e outra... livres da PIDE mental. Nada mais do que isso.
Simples? Julgo que sim. Comum? Nem tanto...
Gonçalo Gil Mata
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