Refojos de Riba d'Ave, PORTUGAL
É misterioso, porque acontece de um momento para outro. A libertação de uma memória, de um momento, de um sentimento às vezes tão bem guardado.
Uma barragem que se rompe, um desequilíbrio de águas que agora se juntam e nivelam. Uma mágoa, profunda, que afinal estava apenas suspensa por um cordel, cada vez mais frágil, seguro e remendado por um tolo sentinela. Um sentinela esquecido, abandonado no campo de batalha, mas imperturbável, seguindo instruções envelhecidas, evitando com igual temor o regresso do que outrora foi mau.
Ainda temendo aquela lâmina bem afiada que um dia nos esventrou a carne, cortando tão mais dentro do que alguma vez achamos possível cortar sem morrer. Com o mesmo medo de quem um dia se viu estatelar desamparado no chão, as mãos atadas nas costas, por confiar, a violência da cara partindo-se contra o betão. Que frágeis somos. Juramos nunca mais.
O que fizemos de errado e de quem foi a culpa são perguntas que se perdem no tempo. Antes desterramos o assunto em zonas sombrias do passado. Que se querem esquecidas. Antes o soterramos num esconderijo desassossegado.
Encerrado em nódulos obscuros, tortuosamente barricados nas profundezas, furtivos, no centro de um campo minado, vigiado. Um tabu que nos pede repulsa só de olhar. Como uma criança se esconde nos lençóis se imagina o bicho papão debaixo da cama. Sem espreitar, claro. Oh espreitas!...
Depois, muito tempo depois, desprevenidos, tropeçando de improviso numa lembrança, numa fotografia, numa música que dispara saudade, através de um sussurro inconsciente, sentimos ser tempo de revisitar o que ficou encalhado. De rever o filme dessa época longínqua, espreitado de um sítio mais seguro. À luz de outra sabedoria, apreciando com mais isenção, de uma fila traseira do cinema, quem sabe até na cabina de projeção, de interruptor na mão, não vá querermos desligar a cena se assustar demais.
O filme corre e não, não assusta. Já não assusta. Não é como imaginávamos. O papão é um peluche esquecido debaixo da cama. E a tensão, a cautela, perdem sentido, pedindo mais cenas, que curiosas memórias estavam lá por perto, esquecidas, tão boas, tão parte de nós, vendo terminado o exílio, convidadas a reunir-se de volta ao que somos. Sentimo-nos novamente íntegros, outra vez inocente e seguro o mundo à nossa volta. E é maravilhoso...
Choramos, certamente, porque isso sempre se passa quando se rompe a barragem. É justamente assim que nivelamos águas. Mas sendo lágrimas que correm de sossego, de paz. Lágrimas de libertação, desmobilizado que está o velho sentinela.
Respiramos melhor. Num fôlego que nem sabíamos ter. Numa profunda gratidão por descobrir tanto do que estava enevoado, tão toldado o sentir. Tudo mais livre, tudo mais simples, por momentos tão evidente o divino em cada um de nós, e em cada parte de tudo.
Espantamo-nos então na completude: mas que espaçosos são os pecados da alma!… Oxalá saibamos sempre reconhecer o tempo certo de nos libertarmos deles, pois aí reside a oportunidade de fazer verdadeira magia. Aí se esconde o elixir secreto com que ampliamos o grande abraço que a vida merece!
Gonçalo Gil Mata
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Esgotaram as inscrições para o REINVENTION DAY 2015. Contamos convosco para o ano.