SACUDIR PRESSA
ARTICLES • 17-09-2015
SACUDIR PRESSA

Sabugueiro, PORTUGAL


 

 

Às vezes acumula-se-me uma certa pressa nos ombros. Pesa. Carrega-me para baixo. Vejo mais chão com ela às cavalitas, olhando os passeios, caminhando depressa, ansiando que chegue rápido alguma coisa, sem saber o quê.
 
 
A pressa faz-nos ver menos. Faz-nos passar ao lado da paisagem, sempre mirando um destino futuro. É um estado de espírito que nos tolda a experiência, nos limita a atenção, nos cilindra o agora, de olhos postos no depois. Sempre depois, sempre mais tarde... 
 
 
Pressa para não me atrasar, pressa para não falhar, pressa para não perder a oportunidade. Pressa para chegar a tempo... a tempo de quê? O que é essa coisa que não espera? Que me empurra para a frente? Que não me deixa descansar? E onde fica esse sossego prometido para quem ganha a corrida? Onde é essa meta que não vejo? Estará reservada para quando se acabarem os dias? Chegarei a tempo?
 
 
Esmaga-me o nunca mais. Enfim, perturba-me a ideia de que a corrente de água doce segue imparável para o mar, irrecuperável, sempre em perda. Parece-me merecer correr muito, para salvar alguma, tanta pena que se salgue...
 
 
Sacudir pressa do corpo é olhar devagar, sem intenção. É respirar. É notar um detalhe. É sorrir à ideia de que vamos morrer. É saber que daqui a muito tempo, este agora poderá já não voltar, é certo, mas existirá para sempre. Convém, por isso, que seja um bom agora. Autónomo. Próprio. Bastante. Auto-suficiente. Não um agora hipotecado para mais tarde. Não um agora só a despachar a ver se chega rápido o depois.
 
 
Às vezes parece que o depois é que vai ser. Mas não é verdade. Afinal, quantas experiências podem caber numa vida sumida em correria desenfreada? Que tamanho pode ter uma semana atropelada pelo desejo de que chegue o Sábado? Quantos agoras em condições poderão lá existir, nesses longos preliminares que ninguém se dá ao trabalho de viver? 
 
 
Insisto que a fita métrica da vida conta os mergulhos em profundidade. Momentos que tudo ampliam, como uma lente de aquário. Autênticas explosões de sensações em câmara lenta. Responsividade plena em cada centímetro de pele. Vida. Intensa. Cheia. A abarrotar de detalhes e sons. Vibrante de côr e cheiro. Nada disso está acessível num momento de pressa. Ôco, vazio, plano, curto, transparente. Irrelevante, esquecido, obliterado. A pressa encurta a vida.
 
 
Hoje vi um bebé maravilhado, hipnotizado com as folhas molhadas das árvores e o sol em contraluz a brincar aos efeitos especiais. Poderíamos porventura recuperar alguma desta capacidade inata para apreciar banalidades que, vendo bem, são tão notáveis? Talvez não, porque descobrir o novo é sempre especial. Mas, havendo esperança, há primeiro, e antes de tudo, que sacudir essa pressa do corpo. Há que parar e respirar antes de olhar. Há que dar hipótese a ver melhor cada agora...
 
 
 
Gonçalo Gil Mata
 

 

5 comments
Rafael Catulo
Obrigado a quem escreveu, e obrigado a quem me deu a ler.
in 2015-10-06 00:26:48
Delmiro António
Belo texto.Perfeito e autêntico.
in 2015-09-20 20:46:02
Flausina
Obrigada :) por este tranquilizante
in 2015-09-19 11:03:18
Ines
Mais um texto maravilhoso que nos trazes!!
Admiro muito a tua sensibilidade e a forma genuína como nos fazes chegar as tuas emoções...
in 2015-09-18 23:41:28
Madalena MEndonça
Muito bem escrito!
in 2015-09-18 11:01:29
Leave a comment:

Name *
E-mail
Message *
Verification