A TEMPO
ARTICLES • 28-12-2015
A TEMPO

San Miguel de Tucuman, ARGENTINA


 

 

Koninklijk Theatre Carré, Amsterdam. No palco, Tom Barman (dEUS) fez uma pequena introdução. A seguir, disse baixinho: "um, dois, três, quatro..." e arrancaram. Um som mágico, completo, uníssono preencheu toda a magnífica sala, quase nos empurrando a cara com uma poderosa onda de intensidade emocional. Cada músico, e todos em conjunto, saltaram para esse instante de magia com uma precisão notável, impactante. Não cada um por si, a medo, a ver o que dava. Mais como se fossem apenas um só, atirando-se sem amarras num arriscado golpe de fé. Confiando cegamente que todos lá estariam também.
 
 
Sabemos que as grandes bandas de palco têm esta prodigiosa capacidade de entrosamento. Casando sonoridades, cosendo notas, num ritmo complexo que é bem mais do que a soma das partes. Mas este efeito de souplesse de um arranque perfeito, a tempo, em cada início de música, em cada mudança de parte, em cada momento da partitura, compassando magia que nos atinge no peito, só é possível porque se treinou muito. Porque mil vezes em estúdio se parou, quando não foi bem, para arrancar outra vez: "um, dois, três, quatro...". Porque mil vezes se adivinhou, mal, o que o outro estava prestes a fazer. Até se ter criado, talvez na milésima primeira vez, esse espaço de premonição quase sobrenatural que sintoniza génios distintos, não apenas numa dada canção, não apenas numa dada passagem, mas em cada ínfimo detalhe. Em tudo.
 
Treinar alta performance é um trabalho duro em afinação permanente, cada vez melhor, e sempre reconhecendo quando não está bem. Sem vergonhas nem egos feridos. Parando, revendo, corrigindo, comunicando até se entenderem as vontades. "Ah, já percebi o que queres... vai, outra vez..."
 
 
Certamente queremos mais desta genialidade na sintonia do dia-a-dia, no grupo de trabalho da empresa, como em casa, mas... onde está na vida a batuta do maestro a sincronizar movimentos? Quantas vezes não empurra ora um, ora outro, à vez, sem jeito, não mexe o comboio, gasta-se a energia, que depois já não apetece. Sabemos o que queremos, que até pode ser o mesmo entre todos, mas como se comunica este "agora é que é"? Não no segundo antes, mas no preciso instante. Onde está na rotina dos empregos e dos casamentos esse mecanismo que qualquer criança conhece de contar: "um, dois, TRÊS!"? Esse "um" displicente, logo seguido desse "dois" tão típico, de sonoridade carregada de suspense, anunciante, para que, de uma só vez, se unam esforços ao "três"...
 
 
Que outra forma há senão parar, quando não foi bem, e rever, comunicar, combinar, tentar, falhar, tentar novamente, e ainda outra vez, e mais uma, até chegar a milésima primeira? E de que adianta tentar mil vezes sem a coragem dessa revisão, dessa conversa sobre o erro, sem nova contagem a dar o mote: "um, dois, três, quatro..."?
 
 
 
A minha sábia professora de piano, proibia-me de tocar do princípio ao fim certas músicas com trechos muito complexos. Antes me encomendava que treinasse essas passagens vezes sem fim. Mil vezes. Ou mais. Até saber tocá-las na perfeição à primeira e a pedido. Ela proibia-me de tocar a peça completa, por saber que, no entusiasmo do lanço, quando eu falhasse a passagem, não iria parar. E o erro ficaria lá, a repetir-se de cada vez, a sulcar um rego cada vez mais fundo. Ultrapassável com o trecho seguinte, sim, mas indelével, e dessa forma incorrigível.
 
 
Na correria da vida, temos pouco tempo para treinar passagens. Para parar e conversar: não foi bem, como poderia ser melhor? Sincronizar dá trabalho. Não se faz de preguiça, não se faz de cabeça enterrada na areia, faz-se de consciência do erro, e de nova tentativa melhor combinada. Não se faz de silêncio e de distanciamento. Não se faz de amuo e de esquecimento que nunca o é. Mas de comunicação, de coragem de assumir, de consciência e monitorização contínua. Isto foi bem, isto não, como seria o ideal? "Ah, já percebi o que queres... vai, outra vez..."
 
 
Na liderança das equipas e das organizações, como dentro das nossas casas, a música não deve seguir se a passagem correu mal. Lamento. Há que voltar atrás. Há que treinar outra vez essa parte. Para que da próxima vez, e nas mil vezes a seguir a essa, possa correr melhor, aí sim tudo de seguida. Porque, se pensarmos bem, ainda vêm aí outras mil vezes, talvez outras dez mil vezes que vamos tocar essa peça. Não será de se corrigir as passagens faltosas?
 
 

 

 

Gonçalo Gil Mata

 


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