A IMPORTÂNCIA DOS TEMPOS MORTOS
ARTICLES • 14-01-2015
A IMPORTÂNCIA DOS TEMPOS MORTOS

La Paz, BOLIVIA


 
 
10h30 da manhã. De pé no metro, por entre o embalo da carruagem, apercebo-me do automatismo com que a minha mão resgata do bolso o telemóvel. Ainda vou a tempo de interromper o polegar que já vai deslizando mecanicamente para ativar o bicho. Sempre algo novo à espera, um feed, um post, um tweet, um email. Sempre algo para fazer: enviar uma mensagem, consultar likes e shares, notificações disto e daquilo, espreitar um link recomendado, ou passar mais um nível de candy crush, que já devo ter vidas...
 
 
É virtualmente infinito. Querendo, posso estimular eternamente o meu "robot" mental, aproveitando cada pausa, cada compasso de espera, convertendo qualquer distração em pseudo-utilidade, sempre à procura de algo para executar, de botões para carregar, de aproveitar, de me ocupar a fazer algo, num vício próprio de slot-machine, será que desta virá prémio?
 
 
Uns dias diverte-me, sim. Mas há dias em que quase me enjoa esta mecânica que parece não pedir licença. Oprime-me sentir fugidia a liberdade de simplesmente estar. Sem mais.
 
 
Resisto à tentação e devolvo ao bolso a máquina do demo e deixo-me escorregar para dentro de um dos meus silêncios mentais. Abdico de gerir atenção. Divago, sem querer executar coisa alguma. Sem querer aproveitar as horas. Deixo-me pairar num tempo completamente morto, dedicado ao vazio. Olho o relógio desafiando o ponteiro a andar mais depressa, a ver se é capaz, mas ele nada - imperturbável no mesmo passo. Sinto-me rico, dono desses segundos que desbarato sem critério. Sem produzir coisa alguma. Sem querer mexer um dedo. Sem querer pensar no que quer que seja. É delicioso.
 
 
Simultaneamente, reflexões surpreendentemente criativas começam a fluir. Sozinhas, sem empurrões. Sem sequer a perturbação de as querer reter ou dar formato que se aproveite. Zero influência. Deixo que tudo flua ao sabor do que calha. À minha volta surgem detalhes notáveis tantas vezes perdidos na rotina apressada de sempre. Assalta-me uma tranquilidade de quem vê um teatro, deixando para os atores a obrigação de se lembrar da próxima deixa. Tudo automaticamente tratado. Relaxante.
 
 
"Próxima paragem: Aliados". Sou eu, é aqui. Empurro-me para fora da carruagem de volta ao mundo e de volta ao automatismo de pensar na agenda, de como vai ser o meu dia, do que tenho que fazer. Ao mesmo tempo, reflito em como tantas das mais importantes conclusões existenciais e ideias de negócio me ocorrem depois destes silêncios mentais. Depois de uma viagem ao deserto, sem rede. Ou no mar. Tantas soluções e perspetivas consequentes destes estados de mergulho solto, em que posso apenas ser. Tanta produtividade na ausência de querer produzir. E tanta paz!
 
 
Penso no ritmo de outrora. Nas esperas auto-suficientes. Nas lentas domingadas familiares. Nas viagens que sempre exigiam procurar cabinas telefónicas. Na saudade forte de uma carta nascida de uma pasmaceira qualquer. No incontactável de então. E no valor disso.
 
 
Pergunto-me se porventura se estarão a afunilar as oportunidades de deixarmos o pensamento auto-purgar-se, livre de estímulos, com permissão para desacelerar, para se auto-pacificar, nem que seja o tempo de 3 paragens de metro... afinal, quando cabe isso, se apitamos a cada minuto, qual bola de flippers? Se agora nem de férias passamos 3 dias que seja desligados?
 
 
Talvez venha a deixar de fazer falta visitar verdadeiro silêncio, e todos engrenemos numa matriz automatizada de ação em permanência... sem grandes reflexões... sempre em modo robot, não sei... Por agora, confesso que me parece um caminho perigoso abolir os tempos mortos!
 
 
 
Gonçalo Gil Mata
 
 
 

 
 

THE IMPORTANCE OF DOWNTIME

 

10:30 a.m.. Standing in the subway, rocked by the carriage’s motion, I realize how automatically I rescue my phone from my pocket. I’m still have plenty of time to interrupt the thumb’s mechanical motion that’s already sliding to activate the beast. There is always something new waiting, a feed, a post, a tweet, an email. Always something to do: send a message, check likes and shares, notifications regarding this and that, to take a pick at a recommended link, or to finish another level on candy crush, I may already have lives again…

 

It’s virtually unlimited. Wanting, I may eternally stimulate my mental “robot”, making the most of each break, each awaiting time, converting each distraction into pseudo-usefulness, always searching for something to execute, buttons to press, things to make the most of, something to do and engage myself with, like a slot-machine addiction, will there be a prize this time?

 

Some days it amuses me,  I won’t deny it. But there are days when this no need for permission mechanics almost sickens me. The feeling of an ever elusive freedom of simply being oppresses me. Nothing else.

 

I resist the temptation and return the devil’s machine to my pocket and let myself slip into one of my mental silence moments. I renounce having to manage my focus. I ramble, without intending to do anything. Without planning to make the most of the hours. I let myself float in a totally dead time, dedicated to the void. I look at my watch defying the pointer to go faster, to see if it can, but it doesn’t respond – unruffled and at its own pace. I feel rich, owner of all those seconds that I waste away without criteria. Not producing a thing. Not even moving a finger. Not thinking about anything. It’s delicious.

 

Simultaneously, surprisingly creative thoughts start to flow. By themselves, without pushing. Even without the disturbance of preserving them or converting them to a format that could be useful. Zero influence. I let everything flow according to its own course. Around me remarkable details that often get lost in our accelerated daily routine start to emerge. I’m struck by the serenity os those watching a play, leaving to the actors the responsibility of remembering the next cue. Everything automatically taken care of. Relaxing.

 

“Next stop: Aliados”. It’s me, it’s here. I push myself out of the train returning to the world and returning to the automatism of thinking within a schedule, about how my day is going to go, what I have to do. At the same time, I think about how many of the most important existentialist conclusions and business ideas occur to me after these moments of mental silence. After a journey to the desert, without internet connection. Or in the sea. So many solutions and perspectives come from this wild and free diving mode, when I’m allowed to just be. So much productivity in the absence of wanting to produce. And so much peace!

 

I think about the rhythm of former times. About the auto-sufficient waiting. About the lazy family Sundays. About the trips that always required a phone booth search. About the strong feeling of missing a letter born from any given lazy moment. About how unreachable we were then. And about the value of that.

 

I ask myself if the opportunities for us to let our thinking processes self-purge, freed from stimuli, with permission to calm down, to make peace, even if it’s only for three subway stops, are eventually narrowing… after all, where does this fit, if we bio at each minute, like a flippers’ ball? If now not even on holidays we let ourselves spend at least three days offline?

 

Perhaps experiencing true silence won’t be necessary in the future, and maybe we’ll all gear ourselves into an automatic matrix of permanent action… without great reflections… always in robot mode, I don’t know… For now, I confess that it seems like a dangerous path to eradicate these downtimes!

 

Gonçalo Gil Mata

 

 

2 comments
Hugo Barros
Que bom é não fazer nada e o nada tudo nos deixar fazer
in 2015-01-22 23:28:27
Florbela
adoro, como sempre!
in 2015-01-19 11:04:33
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