FERRUGEM NO PROJETOR
ARTICLES • 31-10-2015
FERRUGEM NO PROJETOR

Midelt, MOROCCO


 

Ausência de vontade, ausência de movimento, bloqueio. Um recolhimento no conforto da quietude, da imobilização. Um curvar de costas, um peso nos ombros, e a indiferença arrastada num dia a dia que se empurra sozinho, como se fosse caindo lentamente por alguma escadaria abaixo. Sem grandes tropeções, apenas um balanço autónomo que repete uma e outra vez caminhos tão conhecidos onde só raramente algo de notável sucede. O que justifica que de vez em quando se instale um certo outono de alma?

Perceber razões de inércia exige perceber os mecanismos do movimento. Mentalmente, um dado espaço imagético é responsável pela projeção fictícia. A pré-criação do que não existe ainda. "O que queres ser quando fores grande?", "Onde te imaginas daqui a 5 anos?" ou "Como será visitar o México?" perfilam-se como clientes naturais desse nosso estúdio cinematográfico.

É justamente destas mesmas películas, ainda em conceito, que vai nascer a vontade do movimento, desde atravessar a rua para chegar ao outro lado, a empreender na construção de um negócio. É nesse espaço que tudo se projeta, e é ao ver, quase tocar, esse bolo imaginário e apetitoso, pronto a comer, que nos lançamos à procura da receita de o conseguir, mesmo se no fim sai do forno algo diferente do que inicialmente nos pôs ao caminho. É de uma certa estabilidade na projeção de cenários futuros que nascem os grandes líderes, que combinam esse exercício individual de imagética, com competências de comunicação, capazes de desenhar nas mentes das suas equipas muito do que vêm nessa sua tela mental de cinema.


A criatividade no guião do filme, no entanto, segue algumas regras, gradualmente preocupadas com eficiência, merecimento, gestão de expectativas, e evitamento de desaires dolorosos. Numa criança, esses filmes têm poucas limitações. Tudo é possível. Ativar-lhes o projetor é a coisa mais fácil do mundo. Num ápice já o sofá é castelo, o tapete faz de mar e a cadeira se torna caravela. Num instante o candeeiro é o sol, a vassoura mágica e a toalha pelas costas realmente nos torna invisíveis, como no Harry Potter.

Mas, à medida que passa o tempo, que tropeçamos aqui e ali no caminho de tornar sonhos em realidade, somos mais prudentes. Em não sonhar demasiado. Em relembrar como foi má certa desilusão. Como foi penosa certa escalada. Então nasce a cautela de selecionar os filmes que podem passar na tela. Cortamos asas à imaginação. Reduzimos ambição. E, no fundo, instalamos um fiscal da gestão das expectativas no departamento de apreciação e autorização dos filmes que podem passar. E, como nos tempos idos, essa inquisição trata de zelar pela estabilidade, pelos bons costumes, pela serenidade da ordem instalada.

Por natural consequência, ir a esse cinema deixa de ser um momento de entusiasmo, liberdade, loucura e criatividade. Deixa de ser o momento onde a magia faz nascer sementes de projetos brilhantes. E passa a ser um local calmo, onde passam apenas êxitos passados, politicamente corretos e aprovados como adequados, pouco perigosos para a ordem social da mente. Enfim, de uma intenção boa para evitar dor, nasce a imobilização do projetor de imagens, que já nada tem de inspirador - um bolo pálido, incolor, sensaborão, insosso e proibido de cerejas no topo.


Quando por medo nos desautorizamos a sonhar, instala-se essa ferrugem na projeção. E quando não projetamos, não vamos, porque, como sabemos do poeta: pelo sonho é que vamos!

Desenferrujar a máquina, no entanto, não é assim tão difícil. É um exercício de Gulliver a libertar-se dos liliputeanos, uma amarra de cada vez, até já mexer um dedo, depois ligeiramente o braço, e quando tal, livre esse, já de rompante trata do resto das cordas. Há que começar por algum sítio. A fazer algo não habitual, algo criativo, algo infantil até, enfim, algo que espelhe bem como estamos apostados a autorizar-nos ser personagem de um filme que nos entusiasme, nos emocione, nos faça vibrar com esta experiência notável que é viver.

 

Gonçalo Gil Mata

 

 


 

RUSTY PROJECTOR


Dreaming is in order


No will, no movement, blockage. A retraction into the comfort of quietness, of stillness. Arching the back, heavy shoulders, and the dragged indifference in self-pushing days, as if slowly falling down a flight of stairs. With not so many bumps along the way, just an autonomous wavering that only plays, again and again, well-known roads where only rarely remarkable things happen. Why does sometimes a certain soul autumn take over?

 


To understand inertia one needs to understand the movement mechanisms. Mentally, a given image tic space is responsible for the fictitious projection. The pre-creation of what doesn't yet exist. "What do you want to be when you grow up?", "Where do you see yourself 5 years from now?" or "How will it be to visit Mexico?" line up as natural clients of this cinema studio.??Is precisely from these films, yet as a concept, that the will of movement emerges, from crossing the street to get to the other side, to the endeavor of building a business. It's in that space that everything is projected, and it's when we see, almost touch, this imaginary and savory cake, ready to eat, that we go after the recipe of its making, even if in the end something very different from what set us up on the search comes out of the oven.

 


Is from a certain stability of projecting future scenarios that great leaders are born, those that combine this individual exercise of imagery with communication skills, capable of drawing in this teams minds a lot of they are seeing in their one mental movie screen.

 


Creativity on the movie script, however, follows a few rules, increasingly concerning efficiency, merit, expectations management, and painful setbacks avoidance. In a child, those movies have little limitations. Everything is possible. Jumpstart their projector is the easiest thing on Earth. In a blink of an eye, the sofa becomes a castle, the carpet a rough sea and the chair becomes a caravel. In a second the lamp is the sun, with the magic broom and a towel on our back making us truly invisible, just as in Harry Potter.??However, as time goes by, as we stumble here and there along the way of making our dreams come true, we become more cautious. About not dreaming too much. About remembering way bad a certain disappointment was. How painful that climb. And then the caution of carefully selecting the movies allowed on screen is born. We cut the wings out of imagination. We dial down ambition. And, at heart, we install an expectation management inspector in the department of appreciation and authorization of which movies are allowed to play. And, as in the old days, that inquisition takes care of ensuring stability, on behalf of good manners, and serenity of the ruling order. ???As a natural consequence, going to that movie theater is no longer a moment of enthusiasm, freedom, craziness and creativity. Is no longer the moment where magic allows for seeds of brilliant to appear. And it becomes a quite place, where only old hits are played, politically correct and approved as adequates, with little danger for the minds' social order. And thus, from a good intention of avoiding pain, the immobilization of the movie projector is born, a projector that's no longer inspiring -  a pale cake, without color, tasteless and forbidden of cherries on top.

 


?When out of fear we disallow ourselves from dreaming, that rust in the projector settles in. And when we don't project, we don't go, because, as we know from the poet: we go for the dream!???Removing the rust from the machine is not that hard. Is like Gulliver setting free from lilliputians, a rope at the time, until you can move a finger, then slightly an arm, and then, that being free, on a rumple-tumble you take care of the rest of the ropes. We have to start somewhere. Doing something unusual, something creative, childish even, until, at last, something that really mirrors how we're invested in allowing ourselves to be characters of a movie that excites us, wow us, that makes us vibrate on this remarkable experience of living.

 


Gonçalo Gil Mata
 

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