DOENTE
ARTICLES • 05-11-2015
DOENTE

Vihn Long, VIETNAM


 

Doente. Arrepios e dor no corpo. Não pareço capaz de reter alimentos no estômago. É difícil pôr os óculos, porque exigem dos olhos mais do que eles podem neste momento dar. Ver focado parece um esforço demasiado. Tenho a luminosidade do écran no mínimo, pela mesma razão, felizmente o mac tem luz nas teclas, que é para onde olho. Quando o organismo resolve entrar em modo doença, o nosso mundo vira de cabeça para baixo. Em termos de negócio, um pequeno caos. Interrompemos a sessão de trabalho com o cliente para vomitar uma e outra vez, até concluir que temos que sair dali, precisando com urgência de uma cama. E se o calendário já estava impossível para as próximas semanas (ou meses), uma destas machadadas pede o impossível - quantos dias ficarei assim, inapto para existir?
 
 
Estando a medicação e descanso acautelados, o tempo é o pai de todas as curas. Eis um bom exemplo de tempo lento, a não querer passar, mergulhado num mal-estar pervasivo, omnipresente, nos mais pequenos detalhes, como a sensação de quase dor quando a pele entra em contacto com algo frio, seja água ao lavar as mãos, ou um pé descalço na casa de banho do hotel. O mais banal dos movimentos a tornar-se intolerável, num relógio que não avança. Será que se os ouvidos estourarem saem miolos pelas orelhas? Será que poderia mesmo estrelar um ovo na testa como parece?
 
 
At last, the room service... e não é que conseguiram mesmo, tão a desoras, desenrascar uma canja, uma maça cozida, uma torrada com manteiga à parte e um chá? Quanto disto conseguirei enfiar pela goela abaixo, e quanto se manterá no estômago por mais de meia hora? God save Primperan...
 
 
Nauseabundo o cheiro de tudo. Até a maçã cozida ameaça enjoar só de olhar. Coragem, algo tem que entrar - mesmo que não seja para sempre. Comecemos pelo chá, haverá algo mais inofensivo do que uns lábios a debicar chá açucarado? Sim, é por aqui o caminho. A canja, que tanto trabalho terá dado a fazer, tive que a pôr na varanda. Literalmente. Sob pena de não conseguir dormir mais daqui a pouco.
 
 
Em momentos destes o mundo parece perigosamente cheio de inimigos invisíveis. Como poderemos sobreviver se a cada esquina, a cada espirro, a cada troca de beijinhos simpáticos corremos risco de vida? Creches e centros comerciais, autênticos infetários do mal. Tudo me parece negro. Por mim suspendia a minha existência um pouco. Será morrer um lento mal estar destes, crescente? Que turbulência mental tão pesada esta. Parece que tenho todos os deputados do raciocínio aos gritos na bancada parlamentar. Zangados e com razão. Está todo o organismo em falência aparente.
 
 
Felizmente que a nossa experiência resulta do nosso pensamento. E o pensamento de mal estar estará a fazer o seu trabalho, pedindo ação, pedindo correção. Mas sabendo que estamos a fazer o que é possível, e que o corpo tem uma inteligência própria de cura, resta remeter a dor para esse cantinho mental, onde poderá ficar, reinvindicativa, mas no seu lugar.
 
 
Como em qualquer complicação da vida, estar doente pede espaço a que outra serenidade aprecie os minutos a passar. Consegui-la depende em boa parte de uma convicção absoluta de que, mais tarde ou mais cedo, a febre passará, as núvens darão lugar ao sol, a tempestade dará lugar à bonança e, inevitavelmente, uma e outra vez, até que seja a última, regressaremos à magia de estar vivos e de bem com o mundo. Por agora, passem-me o controlo remoto para eu passar esta parte do filme à frente...
 
 
 
 
Gonçalo Gil Mata
 
1 comment
Elisa
fantástico relato! Adorei...
in 2015-11-08 17:33:45
Leave a comment:

Name *
E-mail
Message *
Verification