Angkor Wat, CAMBODJA
Nunca corri uma. Digo, dessas de pôr perna após perna. Admiro, mesmo não sabendo o que é. Parece-me curioso este apego que naturalmente exibimos por elevar a fasquia, testar limites, crescer gradualmente em capacidade. Sim, porque está bom de ver que não é coisa de se chegar um dia de repente e dizer "vou ali fazer a 12ª Maratona do Porto e venho já". Há que ter calçado muitas vezes as sapatilhas. Há certamente que ter levado com muito vento frio na cara, de manhã cedo ou à noitinha. Muita chuva certamente, a lavar o suor, misturando-se os dois, irrelevantes para uma mente que está focada, absorta, concentrada na sua empreitada de completar mais um treino. Tendo já criado brincadeiras ardilosas no pensamento, à cabeçada com o cansaço, ou com a dor. Mecanismos de aguentar sofrimento, de o encarar, de frente, de o medir, de conversar com ele; uma e outra vez de o vencer.
A maratona parece levar esta ginástica ao limite. Este domingo resolvi, como resultado de um desafio de conversa de café, ir assistir à passagem desses bravos aventureiros - tantos que eram - dois em particular meus amigos. Levava comigo um cartaz que dizia: "Coragem! Já só falta um treino!", a ver se os apanhava desnorteados, numa gestão de esforço sem pontos habituais de referência, a uns 8kms do fim, distância decente para um treino médio, se lhes ocorresse a comparação.
Lá foram passando os participantes, cada um na sua passada, no seu estilo, na sua luta equilibrada com o corpo e com a mente. Dói o joelho aqui, sofre a perna ali, magoa o pé acolá. Que significado dar a tudo isso, para quem tem como grilo falante dentro da sua cabeça: "tenho que conseguir; rai's'm'partam se não chego ao fim desta bodega; está quase; agora nos trinta é que é tramado; mas isto vai! olha aquele ali aos gritos com uma cãimbra, oxalá não me toque tal sorte; tu vê lá, que o teu corpo já não tem 20 anos, pode ser preferível desistir, e fazes para o ano, com outro treino; vendo bem, não tens que provar nada a ninguém; mas que raio de diálogo é esse? mas tu és um homem ou és um rato? começaste, agora tens que levar isto até ao fim!". E ocasionalmente lá vinha da corrida um pedido de palmas para quem assistia, como quem diz: uma ajudinha, que isto custa! E nós, maratonistas de pulso, lá acordávamos, aplaudindo e uivando, numa improvisada missão de incentivo, não sabendo, mas imaginando, o que é vir há trinta e cinco kilómetros a correr, e que possíveis diálogos mentais estariam por detrás daquelas faces sofredoras, mas entusiastas, com um fito imperturbável em terminar.
Hoje, dou os parabéns especiais aos maratonistas, pela prova superada!
Mas, porque esta gestão de um esforço muito prolongado me parece uma metáfora tão presente, parabéns também a todos maratonistas da vida, que há tantos tantos quilómetros prosseguem o seu esforço diário, quer no trabalho, fazendo a sua parte na sociedade, quer na vida pessoal, tentando ser bons pais/mães, maridos e mulheres, aqui e ali lutando contra a vontade de desistir, fazendo vingar a perseverança em situações de desconforto, conflito ou doença, mantendo acesa a esperança com problemas de dores que se não são no joelho, são no bolso, e onde o cansaço não vem tanto dos músculos, mas da alma, e onde tantas vezes corremos descalços, numa estrada que raramente está bem pavimentada, e para a qual ainda não há sapatilhas que ajudem grande coisa... é ganhar calo.
Às vezes pergunto-me: de onde nos virá tamanha energia para tanta corrida? Tamanha endurance? Será de não corrermos sozinhos? Será porque nos vamos compensando uns aos outros? Enfim, seja como for, até chegar a derradeira meta, não há outro remédio senão continuar a dar à perna. Resta-nos acertar na melhor passada: nem muito devagar, nem muito depressa!...
Gonçalo Gil Mata
Lembro-me bem desse cartaz... Original e motivador.