Smara, WESTERN SAHARA
Concluí que passei boa parte da minha vida a preparar-me para morrer. A colecionar na bagagem mil e uma aventuras e realizações, na ambição silenciosa de vir a achar que um dia poderia já não ter pena de morrer. Por ter feito tudo.
Uma das minhas cadernetas de cromos mais cuidada foi a das viagens. Até agora percorri, e muitas vezes corri, perto de 70 países, achando que 100 seria o mínimo aceitável. Fiz milhares, mesmo milhões de quilómetros. Fiz todas as check-lists dos guias de viagem. Nas cidades, apressei museus, jardins, mercados e catedrais. Fora delas, galguei vulcões, caminhadas, grutas e montanhas. Atravessei já vários desertos do planeta, mergulhei em muitos dos seus mares e até fiz a loucura de decidir que daria a volta ao mundo por estrada, acabando por me despedir para fazer 40.000km de mota entre Buenos Aires e Nova Iorque, num excesso de zelo por atingir algo de formidável.
Tudo isto foi maravilhoso. Adorei fazê-lo. Enchi-me de vivências marcantes, episódios memoráveis, situações inesquecíveis, tanto as boas como as inevitáveis. Faria tudo igual, sim, porém sinto hoje que já não me faz sentido viajar assim. Não só na estrada, mas também na vida, na carreira, nos negócios, viajo cada vez menos nessa pressa de ir, de atingir, de querer ter feito. ... já não me move essa garimpa dos carimbos e das medalhas invisíveis; já não me entusiasma colar cromos na caderneta; já não quero resolver o desassossego da alma ao deixar algo por fazer.
Achei durante muito tempo que, se fizesse muito, se garantisse ter feito tudo o que era possível, um dia não teria pena de morrer. Mas tenho. Terei sempre. E está bem. Porque a vida é deliciosa. E nunca se faz tudo. E parando de correr noto mais. Pasmo mais vezes na beleza imensa que espreita a cada esquina fugidia. Na intensidade singular do mais banal dos momentos. Num abraço de amigo, que nunca mais se vai repetir daquela maneira.
A mera consciência de estar vivo é uma experiência notável, ampla, profunda, e ao mesmo tempo impossuível. Incolecionável. Não se possui experiência verdadeiramente. Não como quem compra um carro ou uma camisola e os tem ali, à mão de semear. A experiência passa por nós, já! agora! pronto, foi-se... adeus. A experiência vive-se! Se estamos bem acordados... Depois lembra-se, sabe-se, mas já não é a mesma coisa. É na viagem que tudo faz sentido. Não interessa por isso o tamanho da coleção no fim à chegada, senão a disponibilidade ali, no momento, para cada instante do caminho.
Antes, morrer empurrava-me para aproveitar, para correr, para esmifrar, sempre em perda, sempre em fuga. Já não. E ainda bem. Aceitei. Foi como se um fio invisível tivesse sido cortado. Soltou-se a marioneta. Já não é empurrada. Já não corre atrás de nada, a não ser das próprias pernas, qual Forest Gump, infantilmente deliciada pela viagem, à velocidade que lhe parecer melhor. Sem comparar, sem avaliar, sem parar para contar.
Hoje não estou preparado para morrer, é certo, mas isso está bem. Aceito. Sei que se resolverá na altura certa. E troco assim de bom grado a caça aos prémios pela liberdade de poder não correr: respira-se melhor deste lado!...
Gonçalo Gil Mata
Quando se nasce começa-se a morrer!
Gozar a vida enquanto existe!!
Não vale sofrer....