NEPAL
ARTICLES • 29-04-2015
NEPAL

Gorkha, NEPAL


 
 
 
A violência das imagens obriga-me a rever as minhas fotos. Faz por esta altura 3 anos que lá estive. Comparo o antes e depois e torna-se um "descubra as diferenças" demasiado fácil.
 
 
Para quem já esteve no Nepal, nas zonas mais antigas de Kathmandu ou em vilas mais remotas como Gorkha, justamente no epicentro, sabe que os edifícios são no mínimo periclitantes. Exagero se disser meros tijolos sobrepostos com arte e sabedoria, mas, na verdade, pouco mais que isso. Às vezes em paredes ondulantes que parecem socorrer-se de portas e janelas para evitar desconjuntar-se.
 
 
Alarmei-me pois com a desgraça, recordando os velhos telhados em madeira. Não seria necessário grande abanão para isto vir abaixo, pensei eu, à sua sombra. E pensaria qualquer turista ocidental que no seu ritmo de férias na longínqua Ásia desse para se deitar nas escadas, intactas essas, a descansar da caminhada.
 
 
Essa praça de então é muito diferente da de agora. E não digo apenas pelos tijolos a menos. É que se escangalhou igualmente a serenidade característica, trocada pelo desespero empoeirado dos olhares, por uma ira de cabelos ridiculamente esbranquiçados, caras desfeitas debaixo das máscaras, que na verdade são as mesmas que já antes se usavam, por na cidade ser tanto o fumo dos motores. Sei lá eu o que é ver-se a própria casa com uma parede a menos, na dúvida se se aguentarão as que ficaram, insolitamente apreciando cá de baixo o velho sofá da sala. Ou mesmo ver o prédio desmanchado por completo num puzzle acabado de tirar da caixa. Ainda assim sorte de quem o pode ver, é porque não lá estava dentro.
 
 
É inconcebível o que ali vai. É absurdo tropeçar-se em pernas e braços soterrados por entre escombros. Uma incoerência atravessar-se a rua saltando qual liliputiano uma brecha de gigante. Ver-se a padaria, o talho, a mercearia e a loja dos tachos e baldes, desaparecidas na rua de todos os dias, que num passe de magia negra virou um cemitério, autêntico, no real sentido da palavra. Em segundos apenas.
 
 
Os edifícios, às cabeçadas uns nos outros, lembram um Gaudi inspirado, a desafiar o status quo, com um toque de elegância, graciosidade até, não fosse isso ser tamanha desgraça. Como tantas outras desgraças que escorrem nos ecrans dos telejornais, eu sei. Mas esta uma desgraça que sinto um pouco mais próxima por lá ter estado há tão pouco, por ter conhecido alguma daquela gente, que fosse no olá de quem pede um quarto para dormir ou um chá na esplanada da esquina. Uma sensação quase arrogante de isso me dar o direito de perceber melhor o querem dizer aquelas filmagens, que de outra forma passariam como apenas mais umas.
 
 
Nas fotos, há nos rostos aflição e dor. Mas há também contemplação. E as estátuas de divindades que espreitam amiúde por entre o cimento desfeito parecem suscitar aceitação. Escreveram os deuses mais um capítulo. Oxalá saibam aquelas almas navegar a sorte que lhes toca, mesmo sem a compreender. Quero acreditar que, por ser o país que é, por lá ter sentido uma das mais coerentes culturas de espírito, estarão mais bem equipados, se isso se pode dizer num caso assim.
 
 
Enfim, como somos pequenos... minúsculos... e no entanto aqui estamos!
Grato por esta frágil viagem, curiosa, incerta, e garantidamente finita...
 
 
 
Gonçalo Gil Mata

 

2 comments
Francisco Martins
São pobres ou ricos de espírito?

Afinal têm a Montanha Sagrada para uns e mortífera para outros.

...Ninguém tem nada para sempre!!!
in 2022-03-31 14:26:20
laxman devkota
Read it. Living in porto.from nepal.
May I translate this aricle in Nepalese ?
920117232
in 2015-05-02 16:19:36
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