Rajastão, INDIA
É. Às vezes a vida passa-nos ao lado. Um tofu desenxabido que não sabe a nada. Quanta vida temos para gastar e deitar fora assim? Todo um esforço diário cá fora a encontrar uma passividade inerte por dentro, a alma parecendo não se querer mexer para nada, não querendo saber de nada. A música a tocar faltando vontade sequer de levantar da cadeira, quanto mais dançar. Uma dissociação tenebrosa onde o mundo das emoções passa apenas em pano de fundo. Como quem aprecia animais sujos e miseravelmente abandonados numa gaiola de zoo. Uma mistura de curiosidade e asco ético. Para que incomode menos, afastamo-nos de nós na pior prisão, essa de poder percorrer mundo sem lhe conseguir sentir o pulso. Um preto e branco teimoso que não se deixa pintar, que não se entranha na pele, que não mexe por dentro.
Lá fora, tudo acontecendo. Com esforço para que corra mais ou menos sob a nossa batuta atenta e disciplinada. Controla para aqui, controla para acolá. Um esforço sério de encontrarmos as condições que supostamente prometem o que está certo. Tentamos portar-nos bem. Como é suposto.
Mas sabemos que não chega. Que é preciso encontrar a porta misteriosa de contacto entre fora e dentro. Aquela magia que dá textura palpável ao filme. Por que raio um mesmíssimo prato existencial sabe melhor nuns dias que noutros? Queremos descobrir-lhe o tempero. Que sal é este que nos condimenta a predisposição? Que nos dá sabor à experiência?
Dizem-nos que temos que aprender a domar o estado de ânimo. E com idêntico afinco, atiramo-nos então à afinação dos comandos internos. Relativizar. Aceitar. Compreender. Um certo positivismo. Lentes cor-de-rosa. "Always look on the bright side of life". O que parece boa ideia, e até seria um excelente plano, não fosse isso de agarrar teimosamente a manivela do pensamento tão cansativo, tão artificial, tão insustentável...
Mais tarde, um dia, se der sorte, alguns vislumbram, num momento de estranha clareza espiritual, um facto importante sobre a natureza da nossa experiência, e da nossa existência em geral: mais do que um mero filtro de estado de alma, tudo o que sentimos está a ser construído a cada minuto, ativamente, pela máquina da consciência e dos pensamentos. Uma autêntica "Matrix", a parecer verdade, não sendo. É o momento sacrílego de compreendermos que afinal somos deus.
Com esse momento nasce um abismo vertiginosamente inquietante: que fazer com isso? A ideia aterradora de poder largar os comandos. Um pedido de autorização, aguarda deferimento, para saltar sem pára-quedas. O que aparenta ser, convenhamos, no mínimo insensato, para não dizer uma perfeita estupidez.... mas é assim que é o tal desafio. Mais medonho que o próprio medo. Opressivo e esmagador, tal é a promessa de libertação. O desnorte seguro.
E um vislumbre suspeito torna-se uma interiorização visceral. De repente, o que faz sentido, contra todas as regras, contra toda a coleção de estratégias, contra todas as mais básicas normas de segurança, é mergulharmos precipício abaixo nesse plasma que tudo constrói. Sossegando num momento quase etéreo de perda de controlo, por ver que já tudo está em ordem. Um momento de finalmente baixar armas, por já não haver batalha. A inocência de compreender a fábrica da imaginação por detrás de cada provação. Que tudo segue o seu caminho, sendo o nosso entusiasmo não mais a força vital que faz andar o comboio. Liberta agora para apreciar a viagem. Algo de intrinsecamente pacificador acontece quando nos apercebemos, de facto, que não empurramos o planeta a cada dia e a cada volta.
Tudo continua igual, mas diferente. Continuamos a viver, a jogar ao jogo de viver, incluindo tanto os ínfimos detalhes de lavar a roupa e fazer as contas do mês, até aos atos magnânimos de amar com gratidão infinita quem temos à nossa volta ou de fazer avançar com um sonho de vida. Tudo continua igual, por fora, mas com a indiferença apaixonada de quem joga a feijões. Pinta-se o mundo de cores fortes, notam-se subtilezas num tempero rico, que sempre lá esteve, não fosse estarmos tão ocupados a gerir o grande plano mestre.
E se, nestas férias, nos desafiássemos a ver algo disto? Num momento de serenidade de quem estacionou por uns dias as regras de sempre, para ver o que sai? Esticando até um pouco para lá do que nos é confortável a corda do hábito? Desafiando um desrespeito saudável por esse diálogo interno melga que sempre nos atazana o juízo, parecendo saber o devemos fazer, sem que o saiba realmente, por estar desconectado do sabor da vida... E se, por uns dias apenas, nos autorizássemos a sossegar no desnorte de quem não tem que conhecer a lógica de tudo? Seguindo um instinto de exploração, virando a atenção para fora, libertando esse canal sensorial que cozinha lento e nos condimenta bem melhor o que fazer a seguir...
Fica o desafio. Boas férias e... bons temperos!
Gonçalo Gil Mata